Fui eleito pelo povo... e então?

 Nas últimas semanas tenho reparado na arrogância com que certos políticos, eleitos pelo povo, se tentam colocar acima da lei. Este é sem dúvida um dos sintomas mais preocupantes da degradação da nossa democracia.


O caso Tutti Frutti, é paradigmático, pois expõe, com uma clareza dolorosa, que insistem em não querer ver, como o “voto popular” se tem transformado, na boca desses senhores, numa espécie de salvo-conduto para práticas que em qualquer outra democracia saudável seriam causa imediata de demissão.

É revoltante? É. Mas sobretudo é revelador da podridão do sistema. Assistir à situação de que, de todos os autarcas apanhados nas malhas do caso Tutti Frutti, apenas um abandonou o cargo – e mesmo assim, dizem, que o fez por questões de saúde, é lamentável.


Os outros, sem um pingo de dignidade, achando que pertencem ao clube dos intocáveis, agarram-se aos cargos balanceando o escudo da legitimidade democrática. Mas qual legitimidade?  Será que acham que os eleitores votaram para que transformassem as autarquias em balcões de negócios pessoais?  Será que acham que os eleitores lhes deram mandato para que pudessem fazer negociatas obscuras?


A democracia deve servir a república e a liberdade – e quando não serve, perde o seu valor. O voto popular não pode ser encarado como uma bênção divina que santifica todas as ações subsequentes de quem o recebe.  Vencer uma eleição não é a mesma coisa que ser dono da verdade e por isso legitimado a fazer aquilo que quer.


Este cenário fica ainda mais perverso quando percebemos o controlo que estes mesmos senhores, autointitulados democratas, exercem sobre o sistema eleitoral interno dos partidos colocando-se em posição de posteriormente serem “legitimados” pelo povo. Nesse sentido, podemos afirmar que Portugal é hoje um dos países europeus onde, os eleitores têm menos liberdade de escolha, quando votam.


As listas dos partidos vão fechadas, nenhum eleitor pode demonstrar preferência em nenhum candidato. Vota no partido, numa lista por este elaborada, mesmo que saiba a forma pouco democrática, ética e que desconsidera por completo o mérito profissional, curricular, preferindo a lealdade bacoca. Isto é democrático? Não.


Mas, na realidade, o sistema não foi desenhado para servir os cidadãos, mas, sim, para perpetuar o poder dos aparelhos partidários. Foram os partidos a criar o sistema eleitoral, e por esse motivo tenderam a moldá-lo às suas estratégias políticas e não o sistema eleitoral a originar um determinado sistema partidário. Foi o inverso do que deveria ter sido. Mas será que o povo está satisfeito? Creio que não, mas, vamos ser sinceros, tem cumprido com o propósito.


Na nossa democracia tem-se privilegiado sempre o interesse partidário sobre a necessidade de reforma. O resultado está à vista de todos, uma democracia podre, manietada pelas vontades dos partidos, onde os eleitos aprendem, dentro dos próprios partidos onde têm de colocar em prática, se quiserem constar numa lista para ocupar determinado cargo, todo o seu know how de pequenos tiranos imunes à lei e à moral.


E para quem acha que o caso Tutti Frutti se trata apenas de um problema de Lisboa, ou de um pequeno grupo, estão enganados. Na realidade, estamos perante um sistema que permite e, arrisco-me a dizer, incentiva estas práticas. Um sistema onde aquelas caras, que são dadas a conhecer aos eleitores, foram escolhidos, em processos internos dos partidos, por eles próprios, ou por outros que dependeram deles para ganhar eleições internas, e por isso recusam-se a assumir responsabilidades. É um sistema onde a reforma eleitoral tem sido constantemente adiada porque, obviamente, os partidos resistem a ceder aos cidadãos o poder que há tanto se habituaram a controlar e monopolizar. Como viveriam tantos políticos, se não fosse às custas daquilo que os partidos lhes têm dado?



O desenho do sistema eleitoral deveria ser crucial para atrair capacidade, competência e inteligência à assembleia representativa. Mas, afinal, o que temos hoje é um sistema que atrai e protege aqueles que veem na política não um serviço público, mas uma oportunidade de negócio, independentemente das suas capacidades. É uma forma de vida.


Não podemos ignorar que, perante este cenário, os partidos fundadores da democracia, têm a sua quota parte de responsabilidade histórica. Não podem, por isso, continuar a ser cúmplices silenciosos deste estado da arte.


Se querem dar um sinal claro de que não admitem estas práticas, devem exigir – e sublinho, exigir – que todos os implicados em processos como o do Tutti Frutti abandonem imediatamente, não só os cargos públicos que ocupam, mas também todas as posições internas no partido.


Caso contrário, digam o que disserem, usando belas palavras sobre a ética na política, estão, apenas e só, a proteger aqueles que usam o voto popular como biombo para as suas negociatas. Com isso estarão não apenas a minar a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas, como também a alimentar os extremismos que tanto dizem temer.


A política tem, ou devia ter, regras. Nelas deve estar claro que nenhum eleito, por mais votos que possa ter recebido, está acima da justiça e das regras democráticas.


De uma vez por todas, a democracia não pode ser refém de caciques internos que a usam como escudo para a sua própria corrupção.


O voto popular é um instrumento da República, não um livre-trânsito para a ilegalidade.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Ainda podemos fugir do ensino público para o ensino privado? - Paula Costa Gomes

Presos na Teia da Burocracia: Um Olhar sobre a Realidade Docente em Portugal

A Nova Inquisição: O Wokismo e a Caça às Bruxas do Século XXI