A Falácia da Solidariedade no Ensino

 



A recente decisão do Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) de nomear como "solidária" a bolsa de professores classificadores revela uma profunda desconexão entre a retórica política e a realidade educacional portuguesa.

A estratégia ministerial representa um paradoxo perverso: ao mesmo tempo em que se proclama a necessidade de valorizar a carreira docente, implementa-se uma medida que a desqualifica e precariza. A política educativa em Portugal frequentemente revela mais sobre as intenções de quem governa do que sobre as reais necessidades do sistema de ensino.

A realidade das escolas portuguesas é marcada por uma escassez crítica de professores, onde a sobrecarga de trabalho se tornou mais uma regra do que exceção. Os professores frequentemente organizam atividades extracurriculares, sem remuneração adicional, dedicam horas pessoais à preparação de materiais didáticos, assumem responsabilidades administrativas não previstas no seu horário, substituem colegas em falta, desenvolvem projetos inovadores com recursos próprios.

Por esse motivo, a solução apresentada — uma "bolsa solidária" — não apenas subestima a complexidade do trabalho docente, mas normaliza uma cultura de sobrecarga e exploração profissional. A proposta ministerial transforma o trabalho docente num ato de "solidariedade", quando na verdade deveria ser reconhecido como um serviço profissional devidamente remunerado.  O despacho n.º 13218/2023 é revelador: enquanto algumas estruturas regionais recebem montantes pecuniários significativos, aos professores pede-se "solidariedade".

As consequências desta abordagem são mensuráveis e passam pelo desgaste emocional e físico acelerado dos docentes, aumento significativo de baixas médicas no setor, desmotivação de jovens profissionais, degradação da qualidade do ensino, perpetuação de uma cultura de sobrecarga naturalizada. Obviamente, a reação sindical de convocar greve contra este modelo não poderia ser mais previsível. Trata-se de um grito legítimo contra um sistema que transformou o altruísmo docente em moeda de troca política.

É fundamental distinguir o voluntarismo genuíno, nascido da paixão individual pela educação, do voluntarismo institucionalizado e imposto. Quando o Estado transforma colaboração voluntária em obrigação estrutural, perverte o próprio sentido de solidariedade.

A solução é clara e urgente: substituir a "bolsa solidária" por um modelo de remuneração que reflita a real dimensão do trabalho docente. Isso significa, horas extraordinárias adequadamente pagas, compensação proporcional ao número de provas corrigidas, definição clara de funções e responsabilidades, valorização efetiva da carreira docente, respeito pelo tempo e conhecimento profissional.

Como dizia Sophia de Mello Breyner Andresen, "A justiça é a primeira condição da paz". No contexto educacional, a justiça passa por reconhecer e remunerar condignamente o trabalho dos professores, não por transformá-lo em exercício de caridade forçada.

A educação constrói-se com respeito, recursos adequados e remuneração justa. Não com apelos sentimentais à solidariedade. As palavras, neste caso, traem completamente as intenções proclamadas. E os professores merecem muito mais do que palavras vazias.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Ainda podemos fugir do ensino público para o ensino privado? - Paula Costa Gomes

Presos na Teia da Burocracia: Um Olhar sobre a Realidade Docente em Portugal

A Nova Inquisição: O Wokismo e a Caça às Bruxas do Século XXI