A Democracia Não é Seletiva

 



É fundamental esclarecer, desde já, que esta reflexão não pretende defender qualquer força política específica, seja ela A ou B, de direita ou de esquerda. O que aqui se defende é algo mais fundamental: a democracia na sua plenitude e o respeito incondicional pela vontade expressa nas urnas - um princípio que, lamentavelmente, nem sempre vemos ser respeitado no debate público atual.

A essência da democracia reside no poder do voto popular, um princípio fundamental que parece ser convenientemente esquecido quando os resultados eleitorais não correspondem às expectativas de determinados grupos. Nos últimos anos, temos assistido a um fenómeno preocupante: a deslegitimação seletiva do voto popular quando este não favorece determinada orientação política.

Casos recentes em várias partes do mundo ilustram esta tendência perturbadora. Em Itália, Argentina e Estados Unidos, testemunhámos uma vaga de críticas aos eleitores simplesmente porque exerceram o seu direito democrático de escolha. Em Portugal, o crescimento expressivo do Chega nas urnas tem sido alvo do mesmo tipo de reação: em vez de uma análise séria sobre as razões que levam uma parte significativa do eleitorado a optar por esta força política, assistimos a uma constante desqualificação dos eleitores. É notável como a narrativa muda drasticamente consoante o resultado: quando o voto favorece a esquerda, os eleitores são retratados como esclarecidos e progressistas; quando pende para a direita, são rotulados como desinformados ou manipulados.

Esta dualidade de critérios revela uma profunda hipocrisia no discurso político contemporâneo. Os mesmos eleitores que são celebrados pela sua sabedoria quando votam numa determinada direção são sumariamente desqualificados quando optam por uma alternativa diferente. Este comportamento não apenas desrespeita a inteligência do eleitorado, como também mina os próprios alicerces da democracia.

É crucial considerar o contexto em que estas mudanças políticas ocorrem. Em Itália, o país estava há anos sob governos que não passaram pelo crivo das urnas. Na Argentina, décadas de políticas que não resolveram a pobreza crónica levaram a população a procurar alternativas. Nos Estados Unidos, o envolvimento em conflitos externos enquanto os problemas internos se acumulavam naturalmente gerou descontentamento. Em Portugal, o crescimento do descontentamento com problemas estruturais não resolvidos - desde a habitação até aos salários - tem levado muitos eleitores a procurarem alternativas às forças políticas tradicionais.

O papel dos meios de comunicação social e das empresas de sondagens merece especial atenção. A constante disparidade entre as previsões eleitorais e os resultados reais sugere ou incompetência metodológica ou, mais preocupante ainda, tentativas deliberadas de influenciar o eleitorado. A repetição sistemática destes erros em diferentes países e eleições dificilmente pode ser considerada coincidência.

A democracia não pode ser um sistema à la carte, onde aceitamos apenas os resultados que nos agradam. O voto popular é soberano, independentemente de se alinhar ou não com as preferências de determinados grupos intelectuais ou mediáticos. A verdadeira ameaça à democracia não vem dos resultados eleitorais, mas sim das tentativas de os deslegitimar quando não correspondem a certas expectativas ideológicas.

É momento de reconhecermos que a democracia exige maturidade para aceitar resultados adversos e respeito pela vontade popular, mesmo quando esta diverge das nossas preferências pessoais. O eleitor não se torna mais ou menos capacitado consoante o seu voto - é sempre o mesmo cidadão a exercer o seu direito democrático fundamental.

As narrativas que procuram desqualificar o eleitorado com base nas suas escolhas são, em última análise, profundamente antidemocráticas. A verdadeira defesa da democracia está em respeitar a vontade popular expressa nas urnas, independentemente do resultado. Só assim poderemos preservar a integridade do processo democrático e garantir que continue a ser um sistema verdadeiramente representativo da vontade do povo.

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