A bolha política e o desafio da realidade
O mais recente episódio protagonizado pelo primeiro-ministro Luís Montenegro na tomada de posse do novo secretário-geral do Governo merece uma reflexão séria sobre o fosso que separa a classe política da realidade dos portugueses. Quando Montenegro afirma que Carlos Costa Neves vai "pagar para trabalhar" ao auferir um vencimento superior a 6.000 euros mensais, revela-se uma desconexão preocupante com a realidade socioeconómica do país.
Confio na capacidade de governação da Aliança Democrática e tenho observado com otimismo os primeiros passos deste executivo. No entanto, a seriedade da análise política exige distanciamento e isenção, mesmo quando nutrimos simpatia pelo governo em funções. É precisamente este compromisso com uma análise objetiva que me leva a apontar este percalço comunicativo, pois a integridade do comentário político deve sempre sobrepor-se às simpatias partidárias.
Reconheço em Montenegro qualidades de liderança e até agora tem demonstrado uma capacidade interessante de gestão governativa. No entanto, é precisamente por nutrir esta opinião positiva que considero fundamental apontar quando a linguagem falha e se torna inadvertidamente ofensiva para milhões de portugueses.
Num país onde o salário mínimo ainda não atinge os 900 euros, onde muitos professores no início de carreira mal conseguem pagar um quarto nas grandes cidades, e onde crescem as filas para o banco alimentar, falar em "pagar para trabalhar" referindo-se a um ordenado que é cerca de seis vezes superior ao salário mínimo nacional é, no mínimo, uma demonstração de insensibilidade social.
Não está em causa o mérito ou a competência de Carlos Costa Neves, nem sequer a legitimidade da sua remuneração enquanto alto quadro da administração pública. O que está em causa é a retórica que normaliza uma visão distorcida da realidade económica portuguesa. Quando um político considera que ganhar mais de 6.000 euros mensais equivale a "pagar para trabalhar" - ainda que tecnicamente possa estar a abdicar de outros rendimentos - demonstra viver numa bolha privilegiada que o distancia perigosamente do cidadão comum.
Esta desconexão com a realidade não é exclusiva de Montenegro ou do atual governo. É um problema sistémico da nossa classe política, que muitas vezes parece orbitar num universo paralelo onde os valores monetários perderam qualquer relação com o quotidiano da maioria dos portugueses. É esta mesma bolha que permite que se discutam aumentos de cêntimos no salário mínimo durante horas, enquanto se aprovam benefícios fiscais milionários sem pestanejar.
Os políticos precisam urgentemente de um exercício de humildade e realismo. Não se trata de populismo ou de negar remunerações adequadas a cargos de alta responsabilidade. Trata-se de manter uma ligação com a realidade social do país que governam. Quando um governante perde a noção do valor real do dinheiro para o cidadão comum, perde também a capacidade de governar com a sensibilidade social necessária.
O primeiro-ministro e todos os políticos devem ponderar cuidadosamente as suas palavras. Numa época em que cresce o descontentamento com a classe política e proliferam os populismos, cada declaração que revele desconexão com a realidade é munição para os extremismos. A linguagem importa, e as palavras de quem nos governa devem refletir uma compreensão genuína das dificuldades quotidianas dos portugueses.
Montenegro tem demonstrado capacidade para liderar, mas precisa, como todos os políticos, de manter os pés bem assentes na terra. Porque governar não é apenas gerir números e instituições - é, acima de tudo, servir pessoas reais, com dificuldades reais, num país real que está muito longe das mordomias e privilégios do poder.
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