Ainda podemos fugir do ensino público para o ensino privado? - Paula Costa Gomes


Recorrentemente, ouve-se que o descalabro e a falta de aulas, alegadamente agravada pelas sucessivas greves que se verificam na escola pública, prejudica os mais pobres e beneficia os mais ricos, que podem recorrer ao ensino privado.

De facto, no ensino privado (e no privado englobamos o ensino particular, cooperativo e social) não se verificam nem greves nem alunos sem professores.

Por isso, também se ouve com alguma frequência que muitos pais, com maior ou menor esforço financeiro, fazem essa opção.

A pergunta que se segue é: Por quanto tempo mais poderão continuar a fazê-lo?

Analisemos alguns dados relativamente ao ensino privado, no que aos professores se refere.

A educação pré-escolar e o 1º ciclo do ensino básico têm, de longe, o maior peso a nível do ensino privado, sendo sensivelmente 10.000 docentes, segundo os dados da Educação em Números 2024. Os 2º, 3º ciclos e secundário juntos são constituídos por 8.800 docentes.

Estabelecido o peso da educação pré-escolar e 1º ciclo do ensino básico, ou seja, professores em monodocência no ensino privado, importa perceber que estes professores desempenham a sua função em exclusividade, pela simples razão de que a carga horária letiva que lhes é atribuída não permite que lecionem em nenhum outro estabelecimento de ensino. Ou seja, os professores em monodocência do ensino privado são-no em exclusivo do ensino privado.

O mesmo pode não se verificar em relação aos docentes dos restantes ciclos. Embora não existam dados sobre esta questão, é credível a ideia de que muitos, ou alguns pelo menos, são professores em simultâneo no ensino público e privado.

Atentemos agora no panorama do ensino público ao nível dos professores em monodocência.

Até 2030, reformam-se 62% dos educadores de infância. Ou seja, mais de metade dos docentes deste nível de ensino.

Neste momento, o próprio Secretário de Estado da Administração e Inovação Educativa refere a existência de dificuldades graves a nível de contratação de docentes do 1º ciclo do ensino básico.

A par destes dados, surgem notícias de contratações de técnicos especializados para o 1º ciclo do ensino básico.

Acresce que o governo manifestou intenção de abrir a breve prazo mais 19.600 lugares para todas as crianças de 3 anos que continuam sem acesso à educação pré-escolar e alargar (na verdade criar, porque nem sequer existe uma rede pública de creches) a rede de oferta de creches.

Tal significa sensivelmente mais 784 educadores de infância, partindo do princípio que é possível constituir turmas de 25 alunos. Na verdade, e relativamente às crianças com 3 anos, as turmas não podem exceder os 15 alunos. Portanto, passamos a falar de mais 1.300 educadores de infância. Partindo do princípio que as crianças de 3 anos são integradas em turmas heterogéneas com alunos de 3, 4 e 5 anos, os alunos mais novos não deverão exceder os 10 por turma e, portanto, falamos, no melhor dos cenários, de necessidades de contratação de, pelo menos, mais 6.000 educadores de infância. E isto sem sequer incluir o número de educadores necessários para as creches.

Perante estes dados, façamos agora um exercício rápido de simulação: a maioria das condições de trabalho dos professores em monodocência no ensino privado é manifestamente pior do que as condições de trabalho do ensino público, verificando-se até situações que configuram ilegalidades. Portanto, será razoável antecipar que muitos dos docentes destes níveis de ensino se desloquem para o ensino público. Situação, aliás, que já começa a verificar-se se atentarmos na quantidade de ofertas de emprego para estes níveis de ensino a nível do ensino privado.

Perante este cenário, o ensino privado terá um caminho: oferecer condições equivalentes às que os hospitais privados oferecem aos médicos do SNS. E não falamos só de condições salariais, mas também de condições de trabalho e horários substancialmente diferentes.

Porque o privado dificilmente poderá recorrer às soluções de emergência que se verificam neste momento no ensino público, como a contratação de técnicos especializados, ou simples técnicos, ou pessoal sem qualquer formação, para assegurar "atividades" com as crianças. Será também razoável acreditar que os pais dessas crianças dificilmente aceitarão essas situações.

Por outro lado, essa deslocação dos professores em monodocência do ensino privado para o ensino público dificilmente será suficiente para estancar a sangria de docentes que já se verifica, não considerando sequer o que o governo tenciona e necessita de fazer.

Portanto, e em conclusão, ou no ensino público ou no ensino privado ou em ambos, haverá a muito curto prazo falta destes docentes.

A continuar na mesma senda, e nada fazendo para alterar estruturalmente a situação dos professores em monodocência, não restará outra alternativa ao governo senão manter e intensificar a contratação de técnicos, especializados ou não, ou de pessoas com pouca ou nenhuma formação. Estes nada mais farão do que assegurar atividades aos alunos, ainda que as mesmas possam funcionar no espaço escolar. Mas, com honestidade, não se diga que os alunos têm aulas e têm professores.

Os resultados do último questionário da OCDE sobre a iliteracia nacional são reveladores. Contudo, o país continua a assobiar para o lado face aos conhecidos resultados dos diversos estudos internacionais (PISA, TIMSS...).

E não há nenhuma razão para se acreditar que os próximos serão melhores!

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